Thriller ‘O Juízo’ faz um acerto de contas entre um negro escravizado e a família de seus algozes
Com roteiro de Fernanda Torres e direção de Andrucha Waddington, longa aposta no carma brasileiro da escravidão dentro do gênero suspense em uma fazenda mineira.
No Brasil, há muito terror a ser explorado. Faz todo o sentido, então, que um suspense tente ganhar espaço no cinema nacional tendo como pano de fundo o episódio mais horripilante da história do país: a escravidão. O Juízo, filme de Fernanda Torres com direção de seu marido, Andrucha Waddington, que estreia nesta quinta-feira (05/12), apresenta a história de um acerto de contas de mais de duzentos anos entre uma família da elite mineira e o escravo Couraça, vivido pelo cantor e rapper Criolo, que busca a reparação de algo irreparável.
Augusto Menezes, interpretado por Felipe Camargo, muda-se com a mulher, Tereza (Carol Castro), e o filho, Marinho (Joaquim Torres Waddington, estreante no cinema), para uma fazenda abandonada no interior de Minas Gerais, herdada do avô, depois de perder o emprego por problemas de alcoolismo. Sem energia elétrica e isolada no meio da mata, a propriedade carrega o carma da traição a Couraça, traficante de diamantes, que foi assassinado junto com a filha, Ana (Kênia Bárbara), numa emboscada armada por um antepassado dos Menezes.
Nessa trama de duas famílias em deterioração, o casarão branco, solitário e imponente é um elemento central que se soma à estética cinzenta, modorrenta e nublada do filme. “Queríamos esse tom sombrio, e a natureza nos deu o presente de termos apenas dois dias de sol em dois meses de filmagem. Gravamos debaixo de muita chuva”, conta Waddington. Mesmo as cenas diurnas parecem noturnas. Estas, por sua vez, foram gravadas à luz de velas (de fato, não há eletricidade no local) especialmente fabricadas com pavio duplo e uma cera que lhes confere mais luminância.
Tudo foi pensado para criar o ar de suspense que gera tanta bilheteria na indústria norte-americana e que começa a se implantar no Brasil. “O projeto nasceu há quatro anos, em uma época em que o cinema brasileiro estava indo muito bem nas comédias, fidelizando um público. Aí muitos produtores começaram a pensar em por que não a apostar em um cinema de mercado, de gênero. E o suspense, o terror, são muito populares”, lembra Fernanda Torres.
Ela conta que a ideia para o roteiro surgiu ao longo de várias viagens a Minas Gerais. “Via aquelas fazendas e pensava no carma delas, que herdam não só a escravidão do Brasil, mas também o peso da política extrativista, a história dos diamantes.” Em O Juízo, também as pedras preciosas são fantasmagóricas, brotam das águas sem explicação, fazendo jus a uma fala do personagem de Lima Duarte, o ourives Costa Breves: “Ninguém conhece sua fonte. Eles afloram nos rios, mas ninguém sabe de onde vêm”.
Foi com essa ideia em mente que Torres e o marido construíram um suspense com gado, floresta tropical, fazenda colonial, com senzala e cores locais. “Minas Gerais, que é um estado sem mar, muito fechado e policiado durante a Colônia, um lugar onde abundam os sanatórios e os problemas de alcoolismo é, para mim, o Brasil por excelência. É um estado que vai do Nordeste até o Sudeste. Eu sempre achei que havia um carma brasileiro em Minas Gerais que renderia uma história de terror e suspense que lidasse com a questão da escravidão, do extrativismo, da dívida eterna que a gente não consegue curar e da qual ainda somos herdeiros”, explica a roteirista.
“O filme é um drama de construção social que desemboca no que a gente vive hoje. É mais uma oportunidade para, através da arte, questionar como tudo chegou a ser do jeito que está", acrescenta Criolo. Ele conta que, para dar vida a Couraça, lembrou muito de sua própria história familiar. “Meu pai foi metalúrgico a vida toda, durante 40 anos. Meu avô foi estivador do cais do porto de Fortaleza. E indo mais atrás, chegamos a alguém da minha família que não veio aqui porque quis. O Couraça é um homem de extrema habilidade e astúcia, que, dentro daquela condição de homem escravizado, enriqueceu muita gente e conseguiu comprar sua liberdade. Eu não precisei de muitas coisas, infelizmente, para entender a importância daquilo que poderia ser exposto através desse personagem”, diz.
Filme em família
Fernanda Torres admite que temeu ter colocado toda sua família em uma “enrascada”. Além de contar com o marido na direção e o filho como o adolescente Marinho, sua mãe, Fernanda Montenegro, estrela o longa com o papel da espírita Marta Amarantes. “O suspense é um gênero muito perto do risível. É muito arriscado, porque você está a um passo do ridículo, ao lidar com muitos clichês", comenta. De fato, na história mística para explorar o caos emocional e psicológico dos protagonistas, O Juízo peca ao cair em clichês do gênero, incluindo as reviravoltas, quase sempre previsíveis.
O excesso de planos pouco convencionais para construir um ar de mistério quanto o que é realidade e o que é alucinação resulta óbvio. Outro erro é que os atores de maior peso do longa, Lima Duarte e Fernanda Montenegro, acabam com papéis pouco aproveitados. Como thriller, o filme não causa alarde e fica a sensação de algo faltando. No entanto, em tempos de crise no audiovisual brasileiro e na tentativa de alçar um mais um gênero nacional ao apelo comercial, O Juízo é um primeiro passo.
por Joana Oliveira
São Paulo - 05 DIC 2019 - 10:05 BRT
Fonte: El Pais/Cultura
O Juízo é um filme brasileiro de 2019 escrito por Fernanda Torres e dirigido por Andrucha Waddington, lançado em 5 de dezembro de 2019 pela Paris Filmes. Estrelado por Fernanda Montenegro, Felipe Camargo, Carol Castro, Lima Duarte e Criolo.
Elenco
Fernanda Montenegro como Marta Amarantes
Felipe Camargo como Augusto
Carol Castro como Tereza
Criolo como Couraça
Lima Duarte como Costa Breves
Joaquim Torres Waddington como Marinho
Kênia Bárbara como Ana
Fernando Eiras como Dr. Lauro
Gênero: drama, suspense, terror
Direção: Andrucha Waddington
Roteiro: Fernanda Torres
Elenco: Fernanda Montenegro, Felipe Camargo, Carol Castro, Criolo, Lima Duarte
Música: Antônio Pinto, Yaniel Matos, André Namur
Cinematografia Azul Serra Companhia(s) produtora(s) Conspiração Filmes, Globo Filme
Distribuição: Paris Filmes
Lançamento: 5 de dezembro de 2019 (Brasil)
Idioma: português
Orçamento: R$ 8 milhões
Fonte: Wikipédia/O Juízo
O Juízo. Nada contra. O conceito desta película me remeteu ao álbum "Em Família", 1981, do multi-instrumentista Egberto Gismonti. Cinema, via de regra, além de trabalho em equipe, exige espírito familiar para ser bem feito e dar bons resultados em todo o processo. Vide a constituição dos pioneiros grupos empresariais ativos e atuantes nos meios de comunicação. A exemplo da extensa literatura, mais um filme da história brasileira sobre negros, escrito, dirigido e produzido por brancos, tendo dois negros entre os protagonistas e um coadjuvante. Cinema de gênero e com recorte racial e/ou social no Brasil é relativamente barato. Dispensa elenco estelar, a mão de obra é farta e conta com subsídios. Neste contexto serve de base para autores, atores, investidores e produtores negros desenvolverem temas no gênero suspense e terror psicológico na seara escravista, cujo filão deve e merece ser remexido à exaustão. "Quando estou escrevendo e quando outras mulheres negras estão escrevendo, me vem à memória a função que as mulheres africanas - dentro das casas-grandes, escravizadas - tinham de contar histórias para adormecer a casa-grande. Eram histórias para adormecer. Nossos textos tentam borrar essa imagem. Nós não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário, é para acordá-los dos seus sonos injustos". Conceição Evaristo. Inclusive, se pegarmos por parâmetros a questão judaica no período nazista e presente em diversas filmografias. Os elos permanecem encrustados no consciente coletivo e racismo estrutural. É preciso dar vez e voz a quem não teve e ainda não tem vez e voz. Quem assistiu: Besouro, Cidade de Deus, Quanto vale ou é por quilo? Quilombo, Tudo que aprendemos juntos, apenas para citar, sabe do que estamos falando. N.E.
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